Nasci na Europa, na Idade Média,
nasci filha de camponeses, igualmente camponesa. Sempre vivi da terra,
sustentei minha família com o que plantava e os curava com a sabedoria das
ervas, o poder que vinha da natureza. Sabíamos dos dias de chuva e dos dias de
sol graças aos sinais que o próprio planeta nos trazia, éramos felizes com o
pouco que tínhamos. Quando chegou a nova religião, ouvíamos falar que os chás,
as infusões, o nosso sistema de crença eram artes das trevas e que deveriam ser
banidas. Não conseguia entender! Como o conhecimento que recebi das minhas
antepassadas poderia fazer algum mal? Passei a compreender que a melhor forma
de vencer uma ameaça é despertar o medo nas pessoas. E a nossa crença era uma
ameaça ao clero: quanto mais continuassem acreditando no saber dos antigos, menos
seriam fiéis do novo sistema e menos dinheiro, poder eles teriam.
Vi com os
meus próprios olhos os meus irmãos, pais, avós serem queimados e, em seguida,
eu também fui: torturada, queimada por não seguir o paradigma imposto por
aqueles que detinham autoridade. Eles se autoproclamavam Santos Inquisitores,
diziam que eu era herege e que merecia queimar, pelo amor de Deus. Mas eu não
via sentido nisso! Eles mesmos não proclamavam que deveríamos “amar a Deus
sobre todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos”? Vi, inclusive, a imagem
da mulher mãe, anciã, detentora de sabedoria cair por terra, porque no novo
sistema era o homem que tinha voz e vez.
Viajei alguns séculos no tempo,
atravessei o oceano, fui parar em um país tropical, quente, em que existia gente
de todas as cores e credos, o Brasil, e por toda essa miscigenação achei que seria
diferente. Ledo engano. Fui negra, filha de escravos. Nasci numa senzala
imunda, fui forçada, escravizada desde a infância. Vi o meu pai atado ao tronco,
apanhando e ao invés do suor que o trabalho árduo o fazia derramar, vi seus poros
jorrarem sangue. Senti o sofrimento de perto, vi meus irmãos de cor serem
castigados, tratados como nada e eu, por ser mulher, senti a segregação de
forma ainda mais forte: se meus irmãos não podiam frequentar a escola, eu muito
menos. E nas rodas de capoeira, onde eles aprendiam a se defender, disfarçados
atrás de uma suposta dança, cuja qual eu não podia dançar. Quem já viu mulher lutar?
Muito tempo depois, naquele mesmo
país, uma notícia reacendeu uma chama de esperança que, então, estava quase
apagada em mim: a escravidão havia sido abolida. Nós, escravos, estávamos enfim
livres! Livres, porém sem ter do que comer. De que valia a liberdade, então? Estávamos
livres, mas condenados a morrer de fome e sem ter onde morar? Ocupamos
cortiços, não tínhamos acesso a educação, não tínhamos direito a um pedaço de
terra sequer para plantar e produzir nosso próprio alimento. Logo, veio a
Revolta da Vacina e graças aos Higienistas, fomos empurrados para os morros no
Rio de Janeiro, para que a “nossa doença” não ficasse à vista da elite da
sociedade. Enquanto isso, tudo que existia para a burguesia – saúde, educação,
voz, segurança – não subia o morro e nós ficávamos a mercê da própria sorte. Buscávamos
conforto numa religião que veio com os primeiros de nós que chegaram da África
e, mais uma vez, senti a dor de ter a minha crença reprimida: se na Europa eu
fui queimada, no Brasil eu era criminosa simplesmente por acreditar em uma fé
diferente da fé burguesa. Os homens aprimoravam a capoeira, dançavam, gingavam
no morro para se divertir, para amenizar o que se passava na “vida real”. É bem
verdade que a luta disfarçada de dança ainda servia pra proteger o morro, mas era
a alegria de toda a minha gente. Assim como a religião, a dança também virou
crime e tinha nome: vadiagem. Vi muitos dos meus irem pra cadeia, por terem cometido
o crime de carregar consigo a cultura do próprio berço.
Fui também russa. Trabalhei em
uma fábrica, de forma remunerada, mas sob condições desumanas e sem qualquer
direito trabalhista. Me uni com mulheres que, assim como eu, não aceitavam se
submeter a tal tratamento. Nós nos rebelamos, protestamos, fizemos uma greve e,
por fim, vi mais uma vez as labaredas tomarem conta do meu corpo.
Renasci. Dessa vez branca, novamente
brasileira, em uma posição um tanto quanto mais favorecida, mas ainda mulher. Rompi
com a sociedade aristocrata para ser livre. Conhecimento é liberdade – meti isso
na minha cabeça. Fiz direito, fiz medicina, estudei nas melhores universidades,
fui desmerecida, desprezada por não ter nascido homem. Danei que queria ser
jornalista, adotei um pseudônimo masculino. Vi a honra e a glória que cercaram
aquele nome, mas não vivi nada disso por não poder me mostrar. Décadas e
décadas mais tarde, nos anos 30, pude pela primeira vez votar, opinar sobre
quem eu queria que representasse o país. Em 1988, a Constituição Federal me encheu
de alegria quando li que “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de
qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes
no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade”. Confesso que fiquei um tanto quanto desconfiada,
quando li no preâmbulo desta que era declarada “sob a benção de Deus”, mesmo o
seu texto declarando ser o Brasil um estado laico. Mas, de toda forma, eu
estaria protegida de toda ou qualquer desigualdade, correto?
Mais uma vez, me enganei. Em
pleno século XXI, a gente ganha menos exercendo os mesmos cargos. Somos vítimas
de uma sociedade machista e autoritária que, dia após dia, nos reprime mais um
pouco. Se usar roupa curta é puta, se usar saia longa é frígida (ou metida a
puritana). Se usar decote tá pedindo, se usar blusa fechada quer ser santinha.
Batom vermelho? Vestido colado? Nem pensar! Vão achar que é vulgar, vai perder
a credibilidade. E o pior: em boa parte das vezes, a discriminação vem de
outras mulheres que foram rigidamente ensinadas a pensar de forma machista,
quadrada. Ainda hoje eu ligo a minha televisão e vejo por todos os cantos que
mulher tem que ser gostosa, tem que saber rebolar e que homem tem que estudar,
ser executivo e bem sucedido. E eu ponho minha cara pra bater, afirmo que EU
posso ser o que eu quiser poder ser. Eu posso ser loira, ruiva, morena, gorda,
magra, gostosa, rebolar de biquíni ou ser desajeitada dentro do meu combo all
star + jeans + camiseta, qual o problema? O problema está em quem, século após
século, insiste numa repressão ridícula a tudo que foi educado a achar que é
errado, ou a tudo que contrarie o próprio interesse. O problema está em quem
foi ensinado a achar que se é diferente, é ruim e é errado, é feio e não pode
isso, nem pode aquilo. O problema é que até hoje eu saio na rua e vejo o gay
sendo segregado, o negro sendo taxado de ladrão, quem não é cristão sendo
apontado como se fosse aberração e estudante que protesta pelos seus direitos
sendo descrito como arruaceiro, como vândalo, marginal.
Quantas vidas mais eu vou ter que
viver e relatar tudo o que vivi, até que alguma coisa mude de fato? Quantas
vezes eu terei de ser queimada, desmerecida, estuprada na rua (e ouvir dizerem
que “a culpa foi dela, que usou shortinho curto”), reprimida com gás de pimenta
e ser torturada, zombada, acusada de mil absurdos, simplesmente por não me
enquadrar? Quanto mais terei de viver até que eu possa ver a raça humana
convivendo, de igual pra igual, como deveria ser desde sempre? Até quando o
poder, o dinheiro vai ser determinante entre quais valores são os valores
corretos, entre quem vive e quem morre, entre quem se cala e quem opina? Pense
nisso.
ps: As imagens são meramente ilustrativas e a história aqui narrada é fictícia, mas aconteceu.
Um beijo,
Carol Meireles
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